PORTINARI POETA

 

      Portinari, estudante de Pintura na Escola Nacional de Belas-Artes, vivia sonhando com a  Europa. Um dia ganho, no Salão, o prêmio de viagem ao estrangeiro, e o grande sonho realizou-se. Mas na Europa um caso extraordinário se passou: Portinari descobriu Brodowski, o seu torrão natal, no fundo de São Paulo. Na verdade, no fundo da sua subconsciência, e a princípio sob a forma do mais pobrinho e mais humilde de seus conterrâneos. Escreveu então o pintor uma página, que pode ser considerada como prefácio de toda a sua obra de artista plástico – a história de Balaim, um beira-córrego de Brodowski-SP (“Bigode empoeirado e ralo, um só dente, calças brancas feitas de saco de farinha de trigo, ainda com o carimbo da marca da farinha, paletó listrado, com quatro botões, três pretos e um branco , cara mole esbranquiçada  pelo amarelão, aspecto  de  criança doente ...”).

Descoberta Brodowski, estava definitivamente traçado o itinerário artístico de Portinari: quando regressasse para o Brasil, iria pintar Brodowski: “a paisagem onde a gente brincou a primeira vez e a gente com quem conversou a primeira vez não sai mais da gente e eu, quando voltar, vou ver se consigo fazer a minha terra”. Pondo de parte a sua prodigiosa técnica a sua estupenda galeria de retratos, a melhor porção da obre de Portinari é isto: Brodowski, o menino e o povoado, o menino no seu povoado. Por esse fundo vivencial é que Portinari se afirma profundamente ele mesmo, mesmo quando influenciado por Picasso ou pelos surréalistes.

Não se pode, porém, dizer tudo pelos meios plásticos. Havia ainda em Portinari muito que contar da sua infância e de seu povoado. E, ultimamente, Portinari começou a escrever umas coisas a modo de poemas. Ele chamava-as simplesmente escritos.”Vão aqui mais alguns escritos”, dizia-me nos bilhetes que acompanhavam a remessa das suas produções literárias.

Eram realmente poemas. Naturalmente a técnica de Portinari-poeta está longe da técnica Portinari-pintor. Ele próprio tem consciência disso:

 

Quanta coisa eu contaria se pudesse

E soubesse ao menos a língua como a cor.

 

Todavia as duas técnicas são irmãs. Mais: são gêmeas. Só que a do poeta está ainda mais próxima de Balaim.

Os temas de Portinari-poeta são os mesmos de Portinari-pintor: “o povoado”(Brodowski), “lugar arenoso no meio da terra roxa cafeeira. Imenso céu azul circula o areal. Milhares de brancas nuvens viajam: ; a vida no povoado: “as festas, os bailes, as procissões e o sino repicando ... Muito povo endomingando”; as “peladas”dos meninos no largo da Matriz ou junto ao muro do cemitério; de vez em quando um circo “com a sua iluminação de carbureto”. Havia “aparições: “a porteira preta acolhia as assombrações”. Passavam muitos enterros: “Homens silenciosos e escuros, vindos de fazendas distantes, trazendo o caixão negro, cansados do longo caminhar.” Os espantalhos “lutando para que o arroz crescesse”. Os leprosos: “os rasgados e sem cara”, “criaturas espaventosas, carregando a lepra”. Os retirantes: “homens de enorme ventre bojudo, mulheres com trouxas caídas par o lado”, “olhos de catarata e pés disformes”. Tudo isso impressionava fundamente  o menino, e muitos anos depois iria suscitar no homem feito “a revolta”, iria aproximá-lo do comunismo, que não penetrou em Portinari pela ideologia de Marx e Lênin, mas pela propaganda de Prestes saído da prisão e pregando a necessidade distribuir terras aos camponeses miseráveis.

Ainda que Portinari não tivesse sido o grande pintor que foi, toda esta poesia seria válida pelo que ela encerra de aguda e generosa sensibilidade, de registro fiel da vida brasileira no interior. Assim é que tem ela duplo interesse e importância para nós: com valer intrinsecamente, fundamenta, explica, de certa maneira completa, a obra do pintor, a obra patética de um homem que viveu sempre, desde menino, “entre o sonho e o medo”.

 

(Manoel Bandeira)



POEMAS DE PORTINARI